Rubem Alves: É preciso aprender a brincar!
Eu disse
"caixa de ferramentas" e "caixa de brinquedos". Santo
Agostinho disse "ordem da utilidade" e "ordem da fruição".
Freud disse "princípio da realidade" e "princípio do
prazer". Martin Buber disse "o mundo do 'isso'" e "o mundo
do 'tu'". É tudo a mesma coisa.
Mas quem
disse primeiro foram as Sagradas Escrituras. Elas contam que Deus estava
infeliz. O vazio em que vivia lhe dava tédio. Por isso teve um sonho. Sonhou
com um jardim não há nada que dê mais alegria que um jardim. E decidiu plantar
um jardim para ficar alegre.
Começou nos confins do vazio, criando as grandes estrelas, o Sol, a Lua, e foi
afunilando, afunilando, até chegar a um lugar bem pequeno, onde plantou o seu
sonho: o Paraíso. Fontes, árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas,
animais de todo tipo e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes.
Cecília Meireles resumiu essa estória num minúsculo poema enorme: "No
mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta./ No planeta, um jardim./ No
jardim, um canteiro./ E no canteiro, o dia inteiro/ Entre o mistério do Sem-Fim
e o planeta/ A asa de uma borboleta...".
Era o jardim das delícias, destino dos homens, destino do Universo, destino de
Deus! O Paraíso era melhor que o céu. Prova disse é que Deus passeava pelo
jardim ao vento fresco da tarde... Terminado o seu trabalho de seis dias, Deus
parou de trabalhar. Entregou-se então àquilo para que o trabalho havia sido
feito: uma deliciosa vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim
e experimentam o êxtase da beleza! "E viu Deus que era muito bom..."
Os olhos de Deus brincavam com o jardim. Nada havia para ser feito. Tudo para
ser gozado.
Nos limites do meu conhecimento, Jacob Boehme (1575-1624) foi o único teólogo
que entendeu isso. Herética e eroticamente, ele disse que a única coisa que
Deus faz é brincar e que o Paraíso era um lugar para que os homens brincassem
uns com os outros e com as coisas ao seu redor homem e mulher, para que um
brincasse com o corpo do outro. Perderam o Paraíso quando desaprenderam a arte
de brincar.
Os poemas sagrados colocam as coisas na ordem certa. A semana bíblica começa
com os dias de trabalho e termina com o dia de gozo. A igreja alterou essa
ordem. Primeiro o dia da contemplação: o corpo descansa para trabalhar
melhor...
A forma como as ferramentas são aprendidas é muito simples. Tudo começa com o
sonho. O corpo sonha. Pois, como Freud percebeu, ele é movido pelo
"princípio do prazer". O sonho é o meu pequeno paraíso. Se fôssemos
feiticeiros, se tivéssemos o poder mágico dos deuses, bastaria dizer o sonho em
voz alta para que ele se realizasse.
Mas somos fracos seres humanos e temos necessidade de pensar. O sonho dá ordens
à inteligência: "Pense, invente as ferramentas de que necessito para
realizar o meu sonho". Aí a inteligência pensa. Se o sonho não existe, é
inútil dar ordens à inteligência. Ela não obedece.
Veio-me a idéia de que a inteligência muito se parece com o pênis. Não se
assuste: o mundo está cheio das analogias mais estranhas. Pois o que é o pênis?
É um órgão que, no seu estado normal, é um apêndice ridículo, flácido, que
realiza funções excretoras automáticas, que não demandam grandes reflexões.
Mas, se provocado pelo desejo, ele passa por curiosas metamorfoses hidráulicas
que lhe dão a capacidade de ter prazer, de dar prazer e de criar vida. Se não
há desejo, é inútil que a cabeça lhe dê ordens.
Assim também é a inteligência. No cotidiano, ela se encontra num estado flácido
que é mais do que suficiente para a realização das tarefas rotineiras. Quando,
entretanto, é provocada pelo desejo, ela cresce e se dispõe a fazer coisas
ditas impossíveis. Assim viu Fernando Pessoa, que disse: "Sinto uma
erecção na alma". Uma inteligência flácida é uma inteligência sem desejo.
Meu amigo Eduardo Chaves observou que, ao contrário do que anuncia o
best-seller "Inteligência Emocional", a verdade é o oposto. Não há
inteligência emocional. A inteligência jamais procura a emoção. É a emoção que
procura a inteligência. É a emoção que deseja ser eficaz para realizar o sonho.
Mas a capacidade de brincar também precisa ser aprendida. E ela tem a ver com a
capacidade do corpo de ser erotizado pelas coisas à sua volta, de sentir prazer
nelas. Nossos sentidos _a visão, a audição, o olfato, o tato, o paladar_ são
órgãos de fazer amor com o mundo, de ter prazer nele.
Mas não basta ter olhos, nariz, ouvidos, língua, pele. Os sentidos, no seu
estado natural, podem sofrer daquela flacidez sobre que falei... Roland Barthes
sugeriu, então, que a educação dos sentidos fosse semelhante ao "Kama
Sutra", o ensino das várias posições possíveis de fazer amor com o mundo.
Mas isso, é claro, exige que os professores sejam mestres na dita arte...
Rubem Alves, 70, é educador. escreveu, entre outros,
"Livro sem Fim" (Edições ASA), publicado em Portugal, e "Se Eu
Pudesse Viver Minha Vida Novamente..." (Verus).
Site: www.rubemalves.com.br
(http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u896.shtml)
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